Os ossos amarelados e a carne pútrida. Ossos esgotados de toda a energia que ali vivia. Carne perdida, desinibida de toda a dor que ali habitava. Pedaços de um tempo que já se foi, de uma alma que muito sofreu.

Risos e conversas exaltadas. Risos adocicados, temperados ao sabor da juventude que vai passar. Conversas logo esquecidas, donas de um momento que não vai voltar. Estudantes vivendo em função de um futuro que para poucos irá chegar.

Um dia serão então a carne que os vermes agora sequer nascidos irão devorar. Em seus caixões de madeira, também podre, para o pó da terra retornarão. E, eventualmente, um deles há de ficar, há de durar para sempre nas salas fétidas que as próprias bactérias não podem suportar.

E, eventualmente, um deles há de durar, há de sobreviver ao passar dos tempos. Um deles, eventualmente, não corpo, mas alma deve doar. Num outro tempo, que o próprio tempo há de levar, outra alma deve a contemplar.

E os ossos permanecem lá, na fétida sala escura, sem que a luz do sol possa lhes tocar.



A música soava bem afinal, ele ainda tentou explicar sobre a melodia, mas o que de fato marcou foi a poesia que cabia ali. A poesia que ela acompanhou permitindo crescer em si a admiração pelo poeta que se desculpava por não saber cantar (sem saber que assim se contradizia), admiração que depois não saberia como sufocar.

Ele vinha tão cheio de criticas e opiniões, falava sobre o mundo e por vezes eles apenas discutiam sobre os mundos que criavam. E eram mundos de magia e admiráveis vilões. E havia tanto para falar que ela esperava que o tempo demorasse um pouco mais para passar.

Ela percebeu que o coração acelerava conforme o tempo passava e os dias esgotavam. Encontrarem-se todos os dias era exceção, afinal, apenas uma semana especial. Pensou em se declarar, mas hesitou e se permitiu apenas esperar.

Outra semana veio, ela disse tudo o que sempre quis dizer para ele, mas disse para um pedaço de papel agora amassado, jogado em um canto qualquer. Pensou em seu rosto antes de dormir e nas memórias daqueles dias a cada dia mais distantes. Já não lembrava o que a letra da música dizia, talvez falasse em fim do mundo e solidão.

Ela já não sabe dizer há quanto tempo foi, quantos meses ou semanas se passaram. E sem perceber aos poucos fez daqueles dias um conto de fadas particular e sem final.

Ele não era um príncipe, ela também não era princesa. Eram apenas poetas, integrantes de uma corte sem realeza.




Obs. Cinese: agitação da alma.

Obs. Conto escrito em algum momento da segunda metade de 2013. Inspirado em G.M., dedicado a ele portanto, mesmo que tal paixão sempre tenha sido platônica.







Eu sou apenas mais uma pessoa que poderia ter sido tudo na vida, alguém que poderia ter sido qualquer coisa. E, obviamente, fiz minhas escolhas. Se foram boas ou ruins, não posso julgar. Apenas acho que chegou a hora de contar minha história, falar das escolhas que fiz, ou das que deixei de fazer.

Aqui sob o céu azul de Paris, diante da bela paisagem desta cidade que se tornou meu lar, escreverei algumas palavras do dia que teria marcado a vida de muitas mulheres. O dia que teria feito muitas abandonarem a vida ou tornarem-se pessoas repletas de falsos vícios. Para mim: o dia que me fez descobrir quem realmente sou.

Não sei ainda se as palavras soarão agradáveis ou se... bem, não importa. Esse é apenas um pedaço do meu ser: para sempre separado por um véu invisível do resto da sociedade, da realidade e das atitudes comuns.

Nasci numa cidade quase sempre nublada – num país de terceiro mundo – que tenta falsamente imitar o clima europeu. Jamais tive a beleza como principal qualidade, por certos momentos, talvez eu nem a tivesse. Não era tão vaidosa, mas sempre fui inteligente. Sempre.

Lembro-me perfeitamente – embora tenha tentado esquecer – de quando comecei a escutar seus passos. Recordo-me das luzes que não vi naquela noite, do medo confuso que senti. E da forma como ri internamente da minha suposta mente fértil. Mas não era um engano, ele estava atrás de mim. Eu era sua vítima naquela noite.

E você deve estar se perguntando: Quem é ele? Ou talvez: O que é você? Mas eu disse que sou apenas uma pessoa, não deixe sua imaginação ir tão longe. Não desta vez.

Apressei o passo, apertei com força as alças da mochila cor de rosa, suja e surrada. E me amaldiçoei mentalmente por ter saído tão tarde da faculdade. Procurei pela presença de outro ser vivo pela rua. Não havia qualquer pessoa por ali. Havia ele, mas não é deste tipo de pessoa que falo.

Seus passos cada vez mais próximos. O medo e a apreensão. E então ele estava próximo demais e começou por imobilizar meus braços. Como se eu fosse capaz de lutar e fugir. Não vou negar, eu bem que tentei. Chutei o ar e me sacudi inutilmente tentando escapar da força de seus braços.

Eu era uma garota de dezoito anos, me preocupava com livros, jogos virtuais e a faculdade de química. Jamais saberia me defender de qualquer forma que não envolvesse uma varinha mágica, sabres de luz ou telepatia – a magia tola que eu acreditava como uma criança. Tentei gritar também, mas de repente minha voz não existia.

Confesso que jamais consegui gritar em situações de pavor, ou em qualquer emoção forte demais. Por vezes pensei que isto estivesse relacionado com algum instinto de defesa ancestral em que o silêncio era necessário. Mas nada disso importa, talvez nem faça sentido agora.

Quem era ele? Chame-o como quiser. Covarde, criminoso, ladrão, assassino. Tantas outras palavras podem descrever sua maldade sem sentido. Mas não o chamem de psicopata, não acredito que se tratasse de um. Neste último caso eu não estaria aqui para lhe contar minha história.

Psicopata talvez seja uma palavra que descreva a mim. Não àquela criatura.

Era um homem que beirava os quarenta anos, deduzi. Fedia a cigarros baratos e sorria como um idiota. Não notei isso no começo, nunca fui tão observadora, mas percebi nos minutos indefinidos que se passaram depois.

Aquela era uma rua deserta, poucas casas, nenhuma iluminação. Havia terrenos baldios cobertos pela grama alta e algumas raras árvores frutíferas. Era um lugar perfeito para cometer um crime na calada da noite. Enquanto durante o dia era o lugar onde as crianças brincavam na inocência de sua infância.

Alguns pensariam na perda da dignidade, eu pensei na possibilidade de morte. Uma morte vergonhosa digna daqueles jornais que não faziam parte de minha leitura. Eu não queria morrer, eu não desistiria da vida.

Mas eu desisti de lutar contra ele, me ocorreu que talvez depois de tudo ele fosse embora. A escuridão não me permitiu definir como era seu rosto, e agradeço por isto. Ali, sobre a grama maltratada de um lugar esquecido em meio à selva de pedra, vi aquele homem sem nome arrancar minha pesada mochila e depois fazer o mesmo com minhas roupas que ignoravam a moda.

Meu corpo foi jogado com força no chão irregular e senti a dor da queda e dos arranhões. Mas de que importavam pequenos arranhões diante do que eu sabia que viria? A força de seus braços trouxeram manchas escuras que demorariam a sumir de minha pele. E por mais que tenha me ameaçado com uma faca, por algum estranho motivo, nenhum sangue ela derramou naquela noite. Eu jamais estivera nua diante de alguém. Eu não escolhera estar ali.

E como se eu fosse uma boneca inflável ele brincou comigo. Com suas mãos impuras tocou todo o meu corpo sem o meu consentimento. Sobre mim aquele desconhecido derramou-se em prazer diversas vezes. E eu sentia nas lágrimas não derramadas a vergonha de não fazer nada. Não gritei, mesmo quando teria forças para isto. Apenas desejei continuar viva, apesar de tudo.

E lembro-me de ter pensado no que fazer, como deveria reagir. Talvez ele desejasse ver o meu desespero, talvez quisesse me ouvir gritar e isso lhe desse o prazer. Talvez eu devesse ficar quieta. Até mesmo desejei ler pensamentos.

O fato é que permaneci quase imóvel enquanto ele se divertia. Aguentei as dores físicas e psicológicas em silêncio. Minha confusa personalidade me mandava ser assim. Aquele fino véu que sempre me separou da realidade fazia de meus pensamentos e minhas atitudes absurdas demais para que fizessem sentido.

Então ele se retirou de mim, arrumou a calça imunda e imagino que estivesse sorrindo pelo tom de voz que usou:

- Boa garota!

E com a faca em mãos saiu andando. Não o observei, apenas fitei o céu sem estrelas e sem luar daquela estranha noite. Desejei ter qualquer objeto que pudesse feri-lo seriamente em minha mochila. Eu devia ter corrido, devia tê-lo torturado e matado lentamente com minhas próprias mãos. Eu não queria ser uma boa garota.

Não havia mais a preocupação com a morte. E talvez neste momento eu até tenha desejado morrer, mas foi apenas um momento. Fiquei ali tentando assimilar a realidade. Mas eu odeio a maldita realidade.

Depois de algum tempo indefinido levantei e tremula me vesti com as roupas sujas e até mesmo rasgadas, manchadas de sangue. Sangue que representava aquilo que eu jamais teria novamente.

Eu não estava tão longe de casa. E por instinto continuei meu caminho, sem saber que força me guiava. Abri a porta e fiquei contente quando não encontrei ninguém por lá. Não queria que meus pais me vissem daquela forma.

Tomei o banho mais longo de minha vida. Como se fosse possível lavar minha alma e minha memória. E como eu gostaria que fosse. As roupas e até mesmo os tênis que usei eu queimei desejando queimar a alma daquela criatura.

O que eu fiz então? Poderia ter cortado meus pulsos, ou seguido uma carreira religiosa para viver de boas lições sobre paz e moral. Poderia jamais ter retornado para casa e cobrar para fazer aquilo que me roubaram. Tantos caminhos distintos que outras em minha situação seguiram e ainda seguem.

Eu apenas segui em frente sabendo que já não havia tanto a temer da vida. E com uma decisão: jamais deixaria que novamente alguém tomasse uma decisão por mim. Finalmente aceitei o véu que sempre me envolveu, deixei que tomasse conta de mim.

Não contei sobre aquela noite para ninguém, jamais falei sobre ela em voz alta. Como se fosse apenas um borrão sem importância em minha vida. E afinal, foram apenas minutos em que eu desconhecia o futuro.

Hoje os que convivem comigo admiram ou odeiam minha personalidade peculiar. Ninguém jamais me vê chorar ou me emocionar fortemente, a não ser que haja um objetivo em mente. Leves sorrisos e discretos olhares bastam. No entanto, trabalho falando de sentimentos, de amores impossíveis e quase contos-de-fadas.

Descrevo em personagens sentimentos que nunca habitaram meu ser: intensos, extremos e até indiscretos. Enquanto fui alguém que sempre amou e odiou silenciosamente. E mesmo estes sentimentos abafados morreram naquela noite sem luar, sem estrelas.

Talvez eu seja assim: uma noite sem luar. Uma pessoa que não sente. Mesmo diante desta bela paisagem que alguns dizem ser romântica eu a admiro apenas com a mente. Nunca com o coração.

Uso a máscara de minha própria personalidade para esconder o ser insensível que habita em mim. E me pergunto se apenas eu posso ver o véu que me separa do mundo e dos sentimentos cruéis. Pois não são os monstros e toda a maldade, mas sim os sentimentos que nos matam.E matam intensamente.

Paty Maionese




Ela tinha nome e sobrenome, tinha uma família que ficou para trás. Entretanto tornou-se apenas mais uma lembrança. Abandonada. Perdida. Encardida. Pobre Paty!

Sim, seu nome era Paty, mas por vezes chamavam-na Paty Maionese. E quando o diziam exibiam um sorriso sincero e quase infantil no rosto. Ela fazia parte daquela casa, não era apenas mais um objeto, como tantos outros viriam a ser.

Casara-se com Dom Coelho, apesar de todas as diferenças.Confusa família era aquela. Mas havia amor e carinho, havia abraços e conversas silenciosas na calada da noite. Não saberia dizer quantas noites passara em claro a procura de monstros, especialmente de um tal Bicho Papão.

E se fosse permitido à sua natureza, sorriria entre lágrimas de memórias intocáveis. Pois ela era a própria infância abandonada. Era a infância em tons de roxo desbotado e um vestido encardido. Era de uma espécie já extinta e bem amada, onde a inocência reinava.

Fora amiga, escutara lamentos e secara lágrimas. E quando a infância partiu Paty permaneceu ali para receber abraços exageradamente apertados. Doce Paty! Era nela que residia a infância de uma adolescente desligada.

Viveria ali para sempre, e quem sabe um dia viajaria para as terras além do mar. As terras dos sonhos que tanto ouvira falar. Até o dia em que seria entregue a uma nova geração.

Deveria ser assim, mas um erro imprevisível ocorreu. Paty era aquela que até mesmo as viagens compartilhava. Não foi além do mar, mas poderia ouvir o som das ondas quebrarem na areia tão próxima. Ela jamais viu o mar, apenas o escutou dentro de uma mochila repleta de cores.

Aquela foi a última noite antes do fim que todos os de sua espécie temem. Sobre um velho beliche alto demais ficou a zelar um sono de sonhos que seriam esquecidos ao amanhecer. Ficou a procurar pelos monstros que talvez jamais tenham existido.

Mas antes mesmo que a luz chegasse veio o despertar programado. Sob o silêncio viu aquela que a nomeara partir com um sorriso apesar do bocejar constante. Ainda não havia o que temer, a família a qual pertencia permanecia ali em sonos pesados, repleta de um cansaço agradável.

Aos poucos a luz invadiu o quarto através da janela e das cortinas trazendo um novo dia de janeiro. Paty ouvira na noite anterior alguém mencionar que seria aquele o último dia de viagem. Logo estaria em casa para rever Dom Coelho e conversar com Julieta. Também sentia saudades, afinal.

Ruídos no portão e sussurros incompreensíveis foram ouvidos, ela estava de volta. As conversas animadas se transferiram para a cozinha e com elas veio o cheiro agradável de café sendo preparado. Rapidamente todos acordavam para o novo dia entre sorrisos e planos. Crianças corriam, alguns serviam-se de café e bolo, enquanto outros substituíam pijamas por trajes de banho. Mesmo sendo um sentimento, a alegria estava ali em cheiros, sons e cores.

Paty ficou a observar, e se fosse possível sorriria acostumada com aquela rotina de férias. Sobre o beliche, entre cobertas e ao lado de livros bem cuidados. As horas passaram no breve silêncio que tomou conta da casa, silêncio temporário. Era assim, eles sempre voltavam sorridentes e cansados ao horário das refeições.

Entretanto, ninguém saiu logo após o almoço por mais que alguns clamassem por sorvete. De cabelos molhados ela veio, dobrou as cobertas e jogou-as sobre outra cama. Numa mochila cor de rosa organizou cuidadosamente livros e cadernos. E com um olhar disse à Paty “eu já venho te buscar”.

E nunca mais voltou.

Vieram dias sufocantes e noites mais escuras, veio a chuva a alagar e os ratos ruidosos. Veio o outono e o inverno. E Paty Maionese permanecia ali ouvindo apenas raros barulhos distantes da existência humana.

Talvez alguma criança sonhadora tenha enxergado a tristeza por traz da imundice acumulada sobre um vestido que outrora fora branco. Ou talvez algum caminhão verde tenha levado a ursa roxa para uma terra sem volta.

Mas a garota crescida, embora arrependida de sua falta de memória, nunca mais voltou.