Vivia uma vida repleta de sonhos por realizar. Vivia da música, da arte quase perfeita. Arte que era quase sua, que era também alheia. Arte que ainda é quase minha.

Lembro-me das tardes perdidas que passávamos a ensaiar velhas notas musicais, que passávamos a escutar e tocar as músicas de nossos amados Beatles, para em seguida tocar Rolling Stones. As tardes que passávamos em companhia de sua guitarra, que fora o primeiro motivo de meu ciúme e meu amor por ti.

Lembro-me daquilo que a fumaça dos cigarros não pode esconder ou camuflar. Lembro-me também do que os velhos vinis insistem em tocar.

Aquelas nostálgicas tardes verdes em que fazíamos planos para nós, planos para o mundo. Tardes que eram verdes como a própria esperança por um mundo melhor. Aquelas tardes em que confiávamos em nossos falsos hinos de liberdade. Hoje sei que eram falsos, e fico feliz por não ter descoberto antes. Foram belos anos de doce e verde ilusão.

Diante das drogas e do rock and roll você foi o melhor amigo que eu poderia ter encontrado. E a última pessoa que aquela maldita e inesperada carta deveria ter levado. Infinitas vezes maldita, assim como a guerra que ela anunciava. Guerra que era somente cinza, pois não há esperança com ela.

Lembro-me bem de sua expressão ao ler aquelas terríveis palavras. Vi meu próprio medo refletido em teus verdes olhos. Verdes como a droga que não te acompanharia, como as cores que você não mais veria.

E assim em silêncio a carta rasgou nossas primeiras composições. Extinguiu teu perfeito sonho que eu vira crescer. E marcou a data de nosso último cigarro compartilhado.

Aquela era (e ainda é) a América – nossa bela América – que idealizava conosco nossa falsa liberdade. Era a América que pregava nossos hinos e também lutava contra ideais perdidos, que matava inocentes para permanecer livre. Livre da liberdade. Suas últimas palavras ainda ecoam em minha mente, como sua voz ainda canta no único vinil que gravamos. Eram palavras de falsa esperança, de um verde desbotado e desafinado:

- Cuide de minha guitarra. Quando eu voltar cantaremos Help e Yesterday novamente.

Mas você não voltou. E eu canto acompanhando sua voz gravada nesta tecnologia ultrapassada. E ainda cantarei por todas as décadas que vierem, ainda pintarei o verde desbotado da esperança quase morta de ver-te chegar. De ver novamente teus olhos tão verdes e tão vivos.

Cantarei para plateia nenhuma, enquanto a fumaça dos cigarros compulsivamente fumados me deixar respirar. Pois estes são a última droga a me abandonar, mas não o último vício. Meu último vício será sempre a música que me permite te fazer vivo. Meu vício será sempre o Rock de uma década ultrapassada.

O Rock que estará sempre nesta velha coleção de discos sem herdeiros. Estará também no nosso disco gravado e fracassado. Pois a música sempre me lembrará de sua verde presença e sua lembrança sempre me fará cantar.

E nós éramos tão iguais, quase irmãos, em nossa secreta amizade colorida tão bem camuflada em nossas canções. E, no entanto, escolheram somente você para morrer, para matar. Sinto-me culpado em cada amanhecer, culpado por cantar sem ti, culpado por este cigarro não dividir.

Sinto-me culpado por sobreviver.

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